Os pais geralmente contam que reconhecer que seu filho é autista foi a coisa mais traumática que já lhes aconteceu. As pessoas não autistas veem o Autismo como uma grande tragédia, e os pais experimentam um contínuo desapontamento e luto em todos os estágios do ciclo de vida da família e da criança.
Mas este pesar
não diz respeito diretamente ao autismo da criança. É um luto pela perda da
criança normal que os pais esperavam e desejavam ter, as expectativas e
atitudes dos pais e as discrepâncias entre o que os pais esperam das crianças
numa idade particular e o desenvolvimento atual de seu próprio filho causam
mais estresse e angústia que as complexidades práticas da convivência com uma
pessoa autista.
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| Samuel - Arquivo pessoal |
Uma certa quantidade de dor é normal, até os
pais se ajustarem ao fato de que o resultado e o relacionamento que eles
estavam esperando não vai se materializar. Mas esta dor pela criança normal
fantasiada precisa ser separada da percepção da criança que eles realmente têm.
A criança
autista que precisa de adultos cuidadosos, pode obter um relacionamento muito
significativo com essas pessoas que cuidam dela, se lhes for dada a
oportunidade. Atentar continuamente para o Autismo da criança como a origem da
dor é prejudicial tanto para os pais como para a criança e impede o
desenvolvimento de uma aceitação e de um relacionamento autêntico entre eles.
Em consideração a eles próprios ou à suas crianças, eu conclamo os pais a
fazerem mudanças radicais nas suas opiniões sobre o que o Autismo significa.
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| Kelvyn - Arquivo pessoal |
Eu convido
vocês a olharem para o nosso autismo e olharem para o seu luto sob a nossa
perspectiva .
O Autismo não
é um apêndice. O autismo não é algo que uma pessoa tenha, ou uma concha na qual
ela esteja presa. Não há nenhuma criança normal escondida por trás do Autismo.
O Autismo é um jeito de ser, é pervasivo, colore toda experiência, toda
sensação, percepção, pensamento, emoção e encontro; todos os aspectos da
existência. Não é possível separar o Autismo da pessoa. E se o fosse, a pessoa
que você deixaria não seria a mesma com a qual você começou.
Isto é
importante, então, tire um momento para considerar que : Autismo é um jeito de
ser. Não é possível separar a pessoa do Autismo.
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| Marcos Vinicius - Arquivo pessoal |
Por
conseguinte, quando os pais dizem: "Gostaria que meu filho não tivesse
Autismo". O que eles realmente estão dizendo é: "Gostaria que meu
filho autista não existisse, e eu tivesse uma criança diferente em seu
lugar".
Leia isto
novamente. Isto é o que ouvimos quando vocês lamentam por nossa existência. É o
que percebemos quando vocês nos falam de suas mais tenras esperanças e sonhos
para nós: que seu maior desejo é que, um dia, nós deixemos de ser, e os
estranhos que vocês possam amar vão surgir detrás de nós.
Autismo não é uma parede impenetrável.
Você tenta
falar com seu filho autista e ele não responde. Ele não te vê. Você não
consegue alcançá-lo. Não há adentramento. É a coisa mais difícil de lidar, não
é? A única coisa é que isso não é verdade.
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| Murilo - Arquivo pessoal |
Veja novamente:
você tenta falar como pai de uma criança, usando seu próprio entendimento de
uma criança normal, seus próprios sentimentos sobre relacionamentos. E a
criança não responde de forma que você possa reconhecer como sendo parte desse
sistema.
Isso não
significa que a criança esteja totalmente incapacitada para se relacionar. Só
significa que você está assumindo um sistema compartilhado, um entendimento
compartilhado de sinais e significações do qual a criança em questão não
participa.
É como se você
tentasse ter uma conversa íntima com uma pessoa que não tem compreensão de sua
linguagem. É óbvio que a pessoa cuja linguagem não vai entender o que você está
falando; não vai responder da forma que você espera; e pode mesmo achar confusa
e desprazeirosa toda a interação.
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| Francisco - Arquivo pessoal |
Dá mais
trabalho se comunicar com uma pessoa cuja linguagem não é a nossa. E o Autismo
vai mais fundo que a linguagem e a cultura. Os autistas são estrangeiros em
quaisquer sociedades. Você vai ter que abrir mão de toda a sua apropriação de
significados compartilhados. Você vai ter que aprender a voltar a níveis mais
básicos, sobre os quais provavelmente você nunca tenha pensado, vai ter que
abandonar a certeza de estar em seu próprio território familiar de
conhecimento, do qual você está a serviço e deixar seu filho lhe ensinar um
pouco de sua linguagem, guiá-lo um pouco para dentro de seu mundo.
Mesmo que você
tenha sucesso, ainda não será um relacionamento normal entre pai e filho. Sua
criança autista pode aprender a falar, pode ir para séries regulares na escola,
pode ir à Universidade, dirigir um carro, viver independentemente, ter uma
carreira, mas nunca vai conversar com você como outras crianças conversam com
seus pais. Ou, sua criança autista pode nunca falar, pode passar de uma sala de
educação para programas de oficina protegida, ou residências especiais, podem
precisar por toda a vida de cuidado e supervisão de tempo integral - mas essa
tarefa não está completamente fora do seu alcance. As formas que relatamos aqui
são diferentes. Levam para coisas que suas expectativas dizem que são normais,
e você vai encontrar frustração, desapontamento, ressentimento, talvez até
raiva e ódio. Aproxime-se respeitavelmente, sem preconceitos e com abertura
para aprender novas coisas, e você vais encontrar um mundo que nunca poderia
ter imaginado.
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| Daniel - Arquivo pessoal |
Sim, isto dá
mais trabalho que falar com uma pessoa não autista. Mas pode ser feito - a não
ser que as pessoas não autistas estejam muito mais limitadas que nós em sua
capacidade de se relacionar. Levamos a vida inteira fazendo isso. Cada um de
nós que aprende a falar com vocês, cada um de nós que funciona bem na sua
sociedade, cada um de nós que consegue alcançar e fazer um contato com vocês
está operando em um território estranho, fazendo contato com seres alienígenas.
Passamos a nossa vida inteira fazendo isso. E então, vocês vêm nos dizer que
não podemos falar.
Autismo não é morte.
Certo, o
autismo não é o que muitos pais esperam e se preparam quando antecipam a
chegada de uma criança. O que esperam é que uma criança vai parecer com eles,
vai pertencer ao seu mundo e falar com eles sem um treinamento intensivo para
um contato alienígena. Até se a criança tem alguns distúrbios diferentes do
Autismo, os pais esperam estarem aptos a falarem com ela de modo que pareça
normal para eles, e na maioria dos casos, mesmo considerando a variedade de
distúrbios, é possível formar um tipo de laço que os pais têm estado almejando.
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| Ana Beatriz - Arquivo pessoal |
O que acontece
é que se esperava uma coisa que era extremamente importante e desejada com grande
contentamento e excitação, e talvez, gradualmente, talvez abruptamente, teve-se
de reconhecer que a coisa almejada não aconteceu. Nem vai acontecer. Não
importa quantas crianças normais você tenha, nada vai mudar o fato de que
agora, a criança que você esperava, desejada, planejada e sonhada, não chegou .
É parecido com
a experiência parental de ter, por pouco tempo, uma criança recém-nascida e
esta morrer logo na infância.
Não se trata de Autismo, mas de expectativas
cortadas. Sugiro que o melhor lugar para direcionar estes assuntos não seja as
organizações voltadas para o Autismo, mas no aconselhamento das aflições
parentais e grupos de apoio. Nesses espaços eles aprendem a dar termo à sua
perda - não esquecê-la, mas deixar no passado, onde o luto não bate mais no seu
rosto a todo o momento da vida. Aprendem a aceitar que sua criança se foi para
sempre e que não voltará mais. O mais importante é que aprendam a não trazer
seu luto para as crianças que vivem. Isto é de importância fundamental, quando
estas crianças chegam ao mesmo tempo em que a outra está sendo lamentada pela sua
morte.
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| Fernando - Arquivo pessoal |
Não se perde
uma criança para o Autismo. Perde-se uma criança porque a que se esperou nunca
chegou a existir. Isso não é culpa da criança autista que, realmente, existe e
não deve ser o nosso fardo.
Nós precisamos
e merecemos famílias que possam nos ver e valorizar por nós mesmos, e não
famílias que têm uma visão obscurecida sobre nós por fantasmas de uma criança
que nunca viveu.
Chore por seus
próprios sonhos perdidos se você precisa. Mas não chore por nós. Estamos vivos.
Somos reais. Estamos aqui esperando por você .
É o que acho
sobre como as sociedades sobre autismo devem ser: sem lamentações sobre o que
nunca houve, mas deve haver explorações sobre o que é. Precisamos de você.
Precisamos de sua ajuda e entendimento. Seu mundo não está muito aberto para
nós e não conseguiremos se não tivermos um forte apoio.
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| Wendel - Arquivo pessoal |
Sim, o que vem
com o Autismo é uma tragédia: não pelo que somos, mas pelas coisas que
acontecem conosco. Fique triste com isso se quiser ficar triste com alguma
coisa! Melhor que ficar triste com isso é ficar louco com isso - e então faça
alguma coisa. A tragédia não é porque estamos aqui, mas porque o seu mundo não
tem lugar para que nós existamos.
Como pode ser
de outra forma, se nossos próprios pais ainda se lamentam por
nos terem trazido para este mundo ?
Olhe, alguma
vez, para o seu filho autista e tire um momento para dizer para si mesmo quem
aquela criança não é.
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| Sarah - Arquivo pessoal |
Pense:
"Essa não é a criança que esperei e planejei. Não é aquela que fiz todos
aqueles planos e dividi todas aquelas experiências. Aquela criança nunca veio.
Não é esta criança". Então vá fazer do seu luto, não importa o que - e
comece a aprender a deixar as coisas acontecerem.
Depois que
você começar a deixar as coisas acontecerem, volte e olhe para o seu filho
autista novamente: "Esta criança não é a que eu esperava e planejava. É
uma criança alienígena que caiu em minha vida por acidente. Não sei o que é
essa criança ou o que vai ser. Mas sei que é uma criança naufragada num mundo
estranho, sem pais com formas próprias de cuidado. Precisa de alguém com
cuidados para isso, para ensinar, para interpretar e para defender. E devido a
essa criança alienígena cair na minha vida, esse trabalho é meu, se eu quiser”.
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| João Luiz e Pedagoga Solange Oliveira - Arquivo pessoal |
Se esta busca
te excita, então nos acompanhe, na resistência e na determinação, na esperança
e na alegria. A aventura de uma vida está toda diante de você.
JIM SINCLAIR.
Sobre o autor:
Jim Sinclair foi diagnosticado com autismo, atualmente, é
um ativista dos direitos de pessoas com autismo. Nasceu em dezembro de 1961, no Texas, EUA. Tem
formação universitária em psicologia e é especialista em desenvolvimento
infantil e processos de reabilitação. Na década de 90, participou da criação de
um dos primeiros grupos formados por autistas, a Autism Network International
(ani.autistics.org). O discurso acima foi dirigido especialmente aos pais, na
Conferência Internacional de Autismo, em Toronto.


















