Em 2005,
recebi o convite para atuar como pedagoga no então Centro Municipal de Educação
Especial, pertencente à Secretaria Municipal de Educação em Manaus/Am. Fiquei surpresa com o convite, já que não
possuía nenhuma qualificação nesta área, ao mesmo tempo em que me senti
desafiada a aceitá-lo, movida por questões éticas e morais.
É muito comum
ouvir de profissionais da educação a justificativa de que não podem atender uma
criança com deficiência em razão de não possuírem formação específica para tal.
No entanto, os profissionais que atendem às crianças com deficiência, na
maioria das vezes, não tiveram formação específica, na graduação, para atuarem
na área. Sendo assim, assumem a
responsabilidade por sua formação, participando, constantemente, de cursos,
seminários e congressos (quando podem arcar com os custos ou são gratuitos). Além
de muitas leituras sobre o tema, buscando sempre articulá-las a sua prática
pedagógica.
Durante
os anos de assessoramento às turmas que atendiam crianças com deficiência nos
incomodava a falta de criatividade de uma parcela dos professores no uso dos
recursos pedagógicos. Em geral, a atividade de rotina centrava-se, sempre, na
realização de exercícios no caderno ou mimeografados. O objetivo era,
parecia-nos, manter o aluno sentado na cadeira, realizando infindáveis cópias,
muitas vezes sem o mesmo ter compreensão
alguma do que estava fazendo. Um ato mecânico, desprovido de sentido. Outro
desconforto era perceber que havia alunos que permaneciam longos períodos na
Classe Especial sob a justificativa de que não estavam aptos a serem integrados
ao ensino regular. Alguma coisa estava errada.
Essa
foi a razão pela qual decidimos elaborar um projeto de intervenção pedagógica
baseado no uso dos jogos de regras como forma de mediar a aprendizagem, de modo
a auxiliar tanto o aluno quanto o professor. Um ano depois, vimos que poderíamos usar esse mesmo projeto em
turmas de alunos com autismo, matriculados na Escola Especial André Vidal de
Araújo. Tínhamos a crença de que era
possível ajudar às crianças com autismo a vencerem algumas de suas limitações
no âmbito da interação, comunicação e aprendizagem, através da aplicação dos
jogos de regras.
Sabemos
que uma das principais dificuldades das
crianças que apresentam autismo está em estabelecerem interações positivas com
o outro, de modo que isto acaba afetando a sua comunicação e o desenvolvimento
de sua linguagem. Nesse sentido, é preciso investir recursos e estratégias
pedagógicas visando sua socialização, de modo a estimular e desenvolver tais
competências.
Alguns
imaginam que para lidar com uma criança com TEA (Transtorno do espectro do autismo), devemos nos moldar ao seu comportamento, na
verdade é justamente o contrário ou não faria sentido falar em socialização para esses pequenos.
Desse modo a
aplicação dos jogos de regras cumpriu muito bem o seu papel, já que são capazes
de promover a interação mediada pela atividade lúdica, de um modo muito
agradável e “indolor” para crianças com autismo. A troca, a partilha, a
observância do limite entre a minha ação e a ação do outro, estimulam o
desenvolvimento do autocontrole da conduta e consequente autonomia.
Além disso, as
crianças atendidas foram capazes de desenvolver habilidades sociais muito
importantes, tal como aprender a lidar com suas próprias frustrações, no
momento em que perdiam no jogo. No início, evidentemente, ocorreram às birras,
mas, com o passar do tempo - à medida que as regras do jogo eram assimiladas - elas
foram cedendo a uma atitude de resiliência, o que significou para nós um grande
avanço. Como esse tipo de habilidade só pode ser aprendido na prática, a
convivência social através do jogo foi fundamental.
Crianças com
autismo são, sobretudo crianças, dotadas de uma personalidade própria. Não existe uma
criança com autismo igual à outra com o mesmo transtorno. Não faz sentido
buscar estabelecer procedimentos pedagógicos baseados em padrões de
comportamentos autistas que só existem na literatura médica.
Não existe um padrão único de comportamento
que caracterize as crianças com autismo, da mesma forma que não existe um
padrão único que caracterize os ditos normais. Sendo assim, não existe uma
receita pronta, uma orientação prévia. Somente o contato com uma criança com
autismo nos permitirá conhecê-la e entender que ela é produto muito mais das
interações que estabelece com o meio do que fruto, apenas, de um transtorno.
Muitos
profissionais por conhecerem profundamente os padrões que caracterizam um
comportamento autista, ao se depararem com o sujeito real, não conseguem
enxergá-lo, pois o que eles veem é, somente, o Autismo.
No entanto, ao
se permitirem conhecer crianças com autismo percebem que não existe um
comportamento homogêneo neste grupo, apesar de todos apresentarem limitações no
processo de interação em maior ou menor grau. Quando isto acontece chegam a
duvidar que determinadas crianças tenham autismo já que estas não se encaixam
na maioria das características descritas pela literatura médica.
Não estamos negando
a existência do Autismo. O nosso desejo é que as pessoas passem a enxergar as
crianças com autismo, antes de tudo, como crianças. Para as quais a educação no
âmbito familiar e escolar são tão importantes para elas quanto para qualquer outra
criança.
Não desejamos
que todo comportamento de uma criança com Autismo seja justificado, apenas, pelo transtorno. Já que dependendo da natureza das interações que estabelece com o meio e os sujeitos, sua resposta poderá ser positiva ou não. O fato é que
não é possível definir os limites entre o que é resultado do transtorno e o que não
é. Para alguns, todo o comportamento da criança é justificado pelo Autismo,
porque é a única coisa que as pessoas enxergam: uma “criança autista”. Quando
deveriam enxergar uma criança com Autismo. O autismo é apenas um dos seus atributos.
Essa mudança
de perspectiva faria uma enorme diferença no atendimento às crianças com
Autismo. Talvez assim, poderíamos encontrar mais respostas do que indagações.
De antemão, podemos afirmar que existe um leque de possibilidades, pois, em
condições favoráveis,
pessoas com autismo podem se desenvolver de forma plena e saudável. É nisso que
acreditamos.
Nota:
Existe um
registro em vídeo do trabalho realizado com estas crianças no ambiente da
Escola Especial, em 2010.
Este relato
foi elaborado no período em que a pedagoga Solange Oliveira atuou como
assessora pedagógica das Classes Especiais, Salas de Recursos e Escola Especial
sob a coordenação da Profa. RENI FORMIGA, gestora da Gerência de Educação Especial da Secretaria Municipal de
Educação, em Manaus/Am, em 2010.
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